O Brasil teve vários movimentos musicais que sacudiram o mundo. A bossa nova no fim década de 1950 e a tropicália nos últimos anos da década seguinte. O udigrudi surgiu no recife e conciliava o rock psicodélico e a música regional. O movimento tinha caráter de contra-cultura, uma espécie de ''pós-woodstock recifense'' e ia muito além da música, englobando também peças teatrais, o cinema, artes plásticas, literatura e artesanato.
O pioneiro dessa fusão de ritmos distintos foi Lula Cortês, que abriu as portas do udigrudi com o seu disco de estréia, Satwa, que também incursionava pela música oriental e era movido a cogumelos alucinógenos. Foi lançado em 1973 com a participação de Lailson - que ganhou fama internacional pelos seus cartuns e charges publicados nos jornais Diário de Pernambuco e O Pasquim - tocando craviola e do prodígio da guitarra Robertinho do Recife. Lailson diz que Satwa é todo instrumental porque não queria apresentar as letras à polícia federal - o que era lei na época da ditadura militar. O álbum também foi o primeiro independente nacional e não teve boa repercussão na época, um lenda underground obscurecida. A distribuição foi basicamente regional; não houve reedição em vinil e ainda permanece inédito em CD.
Valença) demorou dois anos para ser lançado. Mas também não há motivos para reclamar:
Paêbiru não só
apresentou o paraibano Zé Ramalho - cansado de embalar músicas iê iê iê e da jovem guarda em bailinhos de João Pessoa - ao mundo, é um dos melhores discos nacionais da história, com pedradas como ''Nas Paredes da Pedra Encantada, O Segredo Talhado Por Sumé'', a pancada lisérgica de ''Trilha de Sumé'' e ''Não Existe Molhado Igual ao Pranto'', claramente feita sob efeito de ''expansores do músculo cerebral'', como diria o grande Arnaldo Baptista.
Os quatro lados do vinil duplo homenageavam os quatro elementos da natureza. Houve apenas uma prensagem do álbum de 1.300 cópias, sendo que 1.000 foram destruídas após a enchente que abalou a capital pernambucana naquele ano e abalou o estúdio em que estavam estocados; as cópias restantes que estavam no carro de Kátia Mesel, esposa de Lula e responsável pela mística arte da bolacha. Hoje Paêbiru é o disco mais caro do Brasil, superando a estréia de Roberto Carlos em Louco Por Você. Uma cópia da primeira tiragem em bom estado pode valer até 4.000 reais.
A casa de Côrtes e sua esposa Kátia não era o único ponto de referência dos artistas do movimento. O Beco do Barato, na avenida Conde da Boa Vista, centro do Recife, abrigava reuniões da vanguarda. Zé da Flauta, Lula Cortês, Lailson e integrantes do Ave Sangria eram figurinhas carimbadas de lá. Em 2004, foi lançado o CD A Turma do Beco do Barato - Antologia 70. O projeto foi idealizado por Humberto Felipe, que explicou o porquê da realização do CD para o jornalista Marcos Toledo, do JC Online: “Toda essa história ficou meio esquecida, tanto de gente de hoje quanto de quem viveu a época e não estava antenado.” Fã do Ave Sangria, conta que a idéia sugiu como uma homenagem a banda com participações especiais. “Ao invés de ficar limitado a um nome, resolvi ampliar, não usar o nome Ave Sangria, mas pegar o mais representativo e fazer a Antologia 70”, explica.
A decisão foi sábia: das onze canções da tracklist, sete são inéditas, duas que a Phetus (que contava com Lailson e Zé da Flauta) e a Ave Sangria fizeram a cerca de 30 anos atrás mas nunca tiveram a chance de gravar. As regravações de ''Dois Navegantes'' e ''O Pirata'' por Almir e Marco Polo respectivamente, os principais compositores do Ave Sangria, e ''As Estradas'' e ''Dos Inimigos'' foram valorizadas pela ótima qualidade da gravação, constratando com o som das versões originais.
O Ave Sangria é banda mais popular do udigrudi (talvez por ter sido a única que assinou com uma grande gravadora, a Continental) e até hoje se apresenta em alguns festivais, como
aconteceu nas últimas edições do Psicodália e do Abril Pro-Rock, se apresentando ao lado dos admiradores conterrâneos da Anjo Gabriel. A Ave tinha uma postura que chocava a todos: usavam batom e se beijavam em pleno palco. Mais tarde, Rafles - uma espécie de acessor do grupo e notório doidão da época que chegou a mandar um baseado pelos correios para Paul McCartney (e recebeu em resposta uma fotografia autografada e o devido agradecimento do Beatle) - acaba com a lenda em volta da banda: ''O batom era 'Mertiolate', que a gente usava para chocar. Não sei de onde surgiu essa história de beijo na boca, a única coisa diferente na turma eram os cabelos e as roupas.''
Apesar de ter sido pouco divulgado, o primeiro e único disco homônimo do conjunto teve uma boa repercussão, principalmente no Sudeste, mas a faixa de maior sucesso, o samba-choro ''Seu Waldir'' foi censurada pela ditadura da época, que a considerou como uma ''apologia ao homossexualismo''. O álbum foi relançado sem a polêmica música, mas a mídia já tinha perdido o interesse nos rapazes. A rede Globo, por exemplo, não transmitiu o clipe de ''Georgia A Carniceira'' feito para o Fantástico. Com isso o grupo perdeu o pique: ''A gente era um bando de caras pobres, alguns já com filhos, a grana sempre curta. No aperto, chegamos até a gravar vinhetas para a TV Jornal (uma delas para o programa Jorge Chau)", relembra Marco Polo
Começaram a aparecer teorias de que o Waldir citado na música era real e o vocalista havia se apaixonado por ele. Marco esclarece tudo: "Eu fiz Seu Waldir, no Rio, antes de entrar na banda. Ela foi encomendada por Marília Pera para a trilha da peça A Vida Escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso, que acabou não aproveitando a música".
Outro disco que merece ser destacado é No Sub Reino dos Metazoários, do paraibano Marconi Notaro. Em ''Ah Vida Ávida'', Notaro, Cortês e Zé Ramalho fazem uma pequena obra prima, um lamento viajandão, mas o momento mais radical é ''Made In PB'', um rockão com a épica guitarra distorcida de Robertinho do Recife e efeitos de eco.
Alceu Valença e Geraldo Azevedo foram outros que simpatizaram com udigrudi: a estréia dos dois foi com o disco Quadrafônico, que denotava influência da cena em canções como ''Planetário'' e sua letra viajandona, e na dramática ''Erosão'', carregada de variações de andamento. Alceu ainda beberia mais da fonte psicodélica no disco Vivo!, de 1976.
Hoje em dia, o udigrudi é desconhecido da maioria dos brasileiros, amado por colecionadores e gringos fãs da música brasileira. Lamentável, a cena foi muito mais do que ''o hippie nordestino'' ou mais alguma reação pós woodstock, revelou artistas de renome, respeito e qualidade inquestionáveis e influênciou outras revoluções da música que surgiriam a seguir, como o manguebeat, liderado pelo memorável Chico Science na década de 1990. Mas também não ficou só na música, o udigrudi combateu a ditadura valorizando a força do pensamento e das idéias e mostrou um novo jeito de ser e de fazer.
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