terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Pérolas perdidas: funk, prog e jazz com os africanos do Demon Fuzz

Por Gabriel Albuquerque

Desde o ano de 1948, após a Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra havia perdido uma boa parte de seus trabalhadores. Em meio à falta de mão de obra para abastecer as suas grandiosas fábricas, a Inglaterra começou a estimular estrangeiros a migrar para a Terra da Rainha, a fim de recompor a sua população trabalhista.

E os imigrantes foram. E com eles trouxeram também toda a sua rica herança cultural: crenças, danças, músicas, palavras e expressões e, claro, música. Os ritmos indianos, jamaicanos e africanos podiam ser ouvidos facilmente nas esquinas de grandes cidades como Londres e Birmingham. As novas culturas não foram bem-vistas e terminaram eclodindo em revoltas raciais e um turbilhão de protestos. No entanto a cultura, em especial a música, acabou deixando seu legado nas crianças inglesas e reverbera até o presente dia.

Entre estes imigrantes estava o jovem Paddy Corea, vindo da África do Sul. E logo após voltar de uma inspiradora viagem ao Marrocos, Paddy correu para aprender saxofone e tornou-se o líder do Demon Fuzz, que em apenas oito meses, concebeu Afreaka!, uma rara obra-prima que reuniu, como nunca antes, o progressivo, rock e psicodelia ao suingue negro do ska, jazz, funk e soul.

Tudo começou quando Paddy respondeu o anúncio dos irmãos Winston Joseph e Blue Rivers, que estavam à procura de instrumentistas para sua nova banda. Na sequência, juntou-se ao trio o tecladista Ray Rhoden, que ainda trouxe o seu amigo Clarence, um músico jamaicano que estudara trombone com Rico Rodriguez, um dos pioneiros do ska. Pouco depois, mais um saxofonista subiu à bordo e estava feito o Blue Rivers and The Maroons. ''Não tocávamos apenas ska. Erámos uma banda crua de soul music, não aquele soul leve/macio da Motown que a BBC tocava na rádio'', relembrou Corea em entrevista ao site The Marquee Club.

 O pré Demon Fuzz: Blue River & The Moons 
E mesmo não seguindo os padrões da BBC, o Blue Rivers & The Maroons foi bem-sucedido. Começaram tocando em pubs londrinos de médio porte e depois, com os contatos de seu empresário Ziggy Jackson, subiam nos palcos das principais casas de shows de qualquer cidade inglesa e ainda apareciam com alguma frequência nas páginas da imprensa musical. ''Éramos a melhor banda da região'', comenta Corea.
A banda chegou até a gravar um álbum, entitulado Blue Beat In My Soul, lançado em 1967, que trazia um (razoavelmente bom) híbrido de ska e soul. O trabalho teve uma boa repercussão e acabou gerando mais alguns shows para os rapazes.

Mas dois anos após o lançamento de Blue Beat In My Soul, o grupo se dividiu. Blue Rivers e aquele segundo (e desconhecido) saxofonista seguiram com o Blue Rivers and The Maroons, mas Paddy juntou-se aos demais integrantes do grupo para formar uma nova banda, com diferentes conceitos e concepções: o Demon Fuzz. ''Foi no Marrocos onde nasceu a minha ideia para um tipo diferente de banda e um tipo diferente de música'', contou Paddy à revista Wax Poetics. ''Eu fui apresentado a um novo tipo de música que não estava na escala da Europa ocidental. Aprendi a escala 'Sufi Arábica' e a escala pentatônica lá. Eu ouvi vários músicos tribais do interior tocando vários instrumentos de percussão e sopro e kora, que é um instrumento que usa uma cabaça como como 'resoador'. Tudo isso me fez tentar uma nova abordagem para a minha música. Alguns membros do Maroons entenderam e apreciaram minhas ideias, e estávamos pensando as mesmas coisas, então formamos o Demon Fuzz assim que voltei para a Inglaterra''.

Para completar o time, Paddy recrutou o vocalista Smokey Adams, que cantava numa pequena banda de R&B. O restante do time era completado por Sleepy Jack Joseph (baixo), Ayinde Folarin (congas)Steven John (bateria), W. Raphael Joseph (guitarra), Ray Rhoden (órgão, piano), Clarance Brooms Crosdale (trombone).

O próprio Paddy admite que, inicialmente, o Demon Fuzz ainda não tinha nenhuma direção clara. A banda começou com jams e mais jams de bandas que interessavam ao grupo - tais como o Electric Flag e, principalmente, o Blood Sweet & Tears, ambas do lendário guitarrista Mike Bloomfield -, até que foram surgindo as ideias próprias, geralmente capiteneadas pelo próprio Paddy Corea, mas contando também com a colaboração dos co-fundadores Winston Joseph e Ray Rhoden, guitarrista e tecladista, respectivamente.

Em 1970, com as economias da antiga banda, o Demon Fuzz entrou em estúdio para gravar sua primeira demo. O material agradou ao produtor da Dawn Records, Barry Murray, que viu na banda um produto para competir com as apostas progressivas da EMI e Phonogram. Sem mais delongas, Barry levou Corea e sua trupe para o Pye Studios, em março de 1970, onde gravaram, durante uma semana árdua de gravações, Afreaka!, o primeiro e último álbum de sua carreira.

O disco ainda rendeu textos apaixonados do lendário DJ e crítico John Peel, que viu o Demon Fuzz tocar ao vivo e escreveu: ''soberbo, soberbo, soberbo''. Mas comercialmente, o disco foi um fracasso: mesmo abolido da lei, o racismo e toda a sua truculência ainda estavam cravados na sociedade inglesa em 1970, que não aceitaria um combo de sete músicos negros imigrantes africanos. Consequentemente o disco descansa no abismo do esquecimento até hoje. Mas a memória do Demon Fuzz continua intacta. Tem poucos admiradores, é bem verdade, mas todos aqueles que se permitem ouvir as cinco audaciosas faixas de Afreka! simplesmente não conseguem largar o LP, que se mantém como uma jóia rara setentista.

Mesmo com pouca experiência de estúdio, a banda conseguiu unir com naturalidade e espontaneidade as levadas grooveadas do jazz e do funk com climas e nuances progressivos e batidas do afrobeat - um híbrido de Santana, Sly & The Family Stone, Funkadelic, Traffic e Miles Davis em seu período elétrico. Essas características se notam particularmente na sublime instrumental ''Past, Present and Future'', que carrega consigo linhas de baixo potentes, teclados brilhantes, batera pulsante e estilosas linhas de sax, que trabalham bem a individualidade cada integrante em várias mudanças de andamento, mas que também mantem um sólido conjunto musical, criando um groove hipnótico delirante, o que também acontece na não menos sensacional (e também instrumental) ''Mercy (Variation No. 1)''

Ao longo das várias audições viciadas, destacam-se também o arrepiante lamento soul ''Hym To Mother Earth'', com arranjos harmoniosos potencializados pela irreparável voz cristalina de Adams. Há ainda uma versão de ''Another Country'' do lendário Black Flag, turbinada com um longo solo instrumental e um delicioso e irresistível groove funky.

Em 2005, a Castle Records ainda relançou Afreaka! em CD e LP que incluíam também as três primeiras gravações do grupo em seu EP: uma versão de ''I Put a Spell On You'', de Screamin' Jay Hawkins; a levemente politizada ''Message To Mankind'', que fala sobre os direitos civis; e a instrumental ''Fuzz Oriental Blues''. Bons extras, mas nada muito além de um apêndice.

Apenas dezoito meses após o lançamento de seu único disco, vendendo menos do que bronzeador no Alasca, o Demon Fuzz foi obrigado a encerrar suas atividades. Agora só nos resta Afreaka!, um genuíno exemplo de riqueza e versatilidade musical.

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