quarta-feira, 15 de junho de 2011

Heróis do Udigrudi

Por Gabriel Albuquerque

O Brasil teve vários movimentos musicais que sacudiram o mundo. A bossa nova no fim década de 1950 e a tropicália nos últimos anos da década seguinte. O udigrudi surgiu no recife e conciliava o rock psicodélico e a música regional. O movimento tinha caráter de contra-cultura, uma espécie de ''pós-woodstock recifense'' e ia muito além da música, englobando também peças teatrais, o cinema, artes plásticas, literatura e artesanato.


O pioneiro dessa fusão de ritmos distintos foi Lula Cortês, que abriu as portas do udigrudi com o seu disco de estréia, Satwa, que também incursionava pela música oriental e era movido a cogumelos alucinógenos. Foi lançado em 1973 com a participação de Lailson - que ganhou fama internacional pelos seus cartuns e charges publicados nos jornais Diário de Pernambuco e O Pasquim - tocando craviola e do prodígio da guitarra Robertinho do Recife. Lailson diz que Satwa é todo instrumental porque não queria apresentar as letras à polícia federal - o que era lei na época da ditadura militar. O álbum também foi o primeiro independente nacional e não teve boa repercussão na época, um lenda underground obscurecida. A distribuição foi basicamente regional; não houve reedição em vinil e ainda permanece inédito em CD.


Cortês abriu as portas de sua casa e a transformou num recanto cultura, um verdadeiro ''QG da psicodelia'', como descreveu Zé da Flauta, um ativo participante do movimento. ''uma escola de artes aberta onde se fazia livros, discos, shows, fotografia, filmes Super 8, trabalhos gráficos e se ouvia muita música, muita!'', relembra. Com a sua casa transformada em ponto de encontro, é de se entender porque o disco seguinte, Paêbiru, o ''Tropicalia nordestino'' (uma comparação sensata, tendo em vista que reuniu grandes nomes da cena, como Geraldo Azevedo e Alceu
Valença) demorou dois anos para ser lançado. Mas também não há motivos para reclamar: Paêbiru não só apresentou o paraibano Zé Ramalho - cansado de embalar músicas iê iê iê e da jovem guarda em bailinhos de João Pessoa - ao mundo, é um dos melhores discos nacionais da história, com pedradas como ''Nas Paredes da Pedra Encantada, O Segredo Talhado Por Sumé'', a pancada lisérgica de ''Trilha de Sumé'' e ''Não Existe Molhado Igual ao Pranto'', claramente feita sob efeito de ''expansores do músculo cerebral'', como diria o grande Arnaldo Baptista.
Os quatro lados do vinil duplo homenageavam os quatro elementos da natureza. Houve apenas uma prensagem do álbum de 1.300 cópias, sendo que 1.000 foram destruídas após a enchente que abalou a capital pernambucana naquele ano e abalou o estúdio em que estavam estocados; as cópias restantes que estavam no carro de Kátia Mesel, esposa de Lula e responsável pela mística arte da bolacha. Hoje Paêbiru é o disco mais caro do Brasil, superando a estréia de Roberto Carlos em Louco Por Você. Uma cópia da primeira tiragem em bom estado pode valer até 4.000 reais.

A casa de Côrtes e sua esposa Kátia não era o único ponto de referência dos artistas do movimento. O Beco do Barato, na avenida Conde da Boa Vista, centro do Recife, abrigava reuniões da vanguarda. Zé da Flauta, Lula Cortês, Lailson e integrantes do Ave Sangria eram figurinhas carimbadas de lá. Em 2004, foi lançado o CD A Turma do Beco do Barato - Antologia 70. O projeto foi idealizado por Humberto Felipe, que explicou o porquê da realização do CD para o jornalista Marcos Toledo, do JC Online: “Toda essa história ficou meio esquecida, tanto de gente de hoje quanto de quem viveu a época e não estava antenado.” Fã do Ave Sangria, conta que a idéia sugiu como uma homenagem a banda com participações especiais. “Ao invés de ficar limitado a um nome, resolvi ampliar, não usar o nome Ave Sangria, mas pegar o mais representativo e fazer a Antologia 70”, explica.


A decisão foi sábia: das onze canções da tracklist, sete são inéditas, duas que a Phetus (que contava com Lailson e Zé da Flauta) e a Ave Sangria fizeram a cerca de 30 anos atrás mas nunca tiveram a chance de gravar. As regravações de ''Dois Navegantes'' e ''O Pirata'' por Almir e Marco Polo respectivamente, os principais compositores do Ave Sangria, e ''As Estradas'' e ''Dos Inimigos'' foram valorizadas pela ótima qualidade da gravação, constratando com o som das versões originais.


O Ave Sangria é banda mais popular do udigrudi (talvez por ter sido a única que assinou com uma grande gravadora, a Continental) e até hoje se apresenta em alguns festivais, como
aconteceu nas últimas edições do Psicodália e do Abril Pro-Rock, se apresentando ao lado dos admiradores conterrâneos da Anjo Gabriel. A Ave tinha uma postura que chocava a todos: usavam batom e se beijavam em pleno palco. Mais tarde, Rafles - uma espécie de acessor do grupo e notório doidão da época que chegou a mandar um baseado pelos correios para Paul McCartney (e recebeu em resposta uma fotografia autografada e o devido agradecimento do Beatle) - acaba com a lenda em volta da banda: ''O batom era 'Mertiolate', que a gente usava para chocar. Não sei de onde surgiu essa história de beijo na boca, a única coisa diferente na turma eram os cabelos e as roupas.''
Apesar de ter sido pouco divulgado, o primeiro e único disco homônimo do conjunto teve uma boa repercussão, principalmente no Sudeste, mas a faixa de maior sucesso, o samba-choro ''Seu Waldir'' foi censurada pela ditadura da época, que a considerou como uma ''apologia ao homossexualismo''. O álbum foi relançado sem a polêmica música, mas a mídia já tinha perdido o interesse nos rapazes. A rede Globo, por exemplo, não transmitiu o clipe de ''Georgia A Carniceira'' feito para o Fantástico. Com isso o grupo perdeu o pique: ''A gente era um bando de caras pobres, alguns já com filhos, a grana sempre curta. No aperto, chegamos até a gravar vinhetas para a TV Jornal (uma delas para o programa Jorge Chau)", relembra Marco Polo

Começaram a aparecer teorias de que o Waldir citado na música era real e o vocalista havia se apaixonado por ele. Marco esclarece tudo: "Eu fiz Seu Waldir, no Rio, antes de entrar na banda. Ela foi encomendada por Marília Pera para a trilha da peça A Vida Escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso, que acabou não aproveitando a música".


Outro disco que merece ser destacado é No Sub Reino dos Metazoários, do paraibano Marconi Notaro. Em ''Ah Vida Ávida'', Notaro, Cortês e Zé Ramalho fazem uma pequena obra prima, um lamento viajandão, mas o momento mais radical é ''Made In PB'', um rockão com a épica guitarra distorcida de Robertinho do Recife e efeitos de eco.

Alceu Valença e Geraldo Azevedo foram outros que simpatizaram com udigrudi: a estréia dos dois foi com o disco Quadrafônico, que denotava influência da cena em canções como ''Planetário'' e sua letra viajandona, e na dramática ''Erosão'', carregada de variações de andamento. Alceu ainda beberia mais da fonte psicodélica no disco Vivo!, de 1976.

Hoje em dia, o udigrudi é desconhecido da maioria dos brasileiros, amado por colecionadores e gringos fãs da música brasileira. Lamentável, a cena foi muito mais do que ''o hippie nordestino'' ou mais alguma reação pós woodstock, revelou artistas de renome, respeito e qualidade inquestionáveis e influênciou outras revoluções da música que surgiriam a seguir, como o manguebeat, liderado pelo memorável Chico Science na década de 1990. Mas também não ficou só na música, o udigrudi combateu a ditadura valorizando a força do pensamento e das idéias e mostrou um novo jeito de ser e de fazer.



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